O professor ensina, os alunos aprendem. Certo? Errado!
Foi-se o tempo em que este pensamento era lugar comum nos espaços educadores. O mito de que o conhecimento é posse exclusiva do professor acabou-se. Com o advento dos buscadores da internet, com destaque para o “Google”, que numa clicada é capaz de nos trazer milhares de referências sobre um determinado assunto, mesmo que incluindo algumas inverdades, o conhecimento nunca esteve tão disponível a milhares de pessoas.
Por isso tudo a vida docente é sempre um eterno aprendizado. E também por isso é que faço questão de me manter em contato com alunos e alunas todos os anos. Neste momento, quando o ano termina, várias turmas se encerram. Alguns eu sei que jamais verei nos próximos meses; outros estarão comigo em disciplinas complementares. Mas o que fica são as recordações sobre polemicas, discussões e aprendizados para ambos, alunos e professor. E isso é que vale nessa interação semana a semana, o contato e o aprendizado mútuo.
E neste semestre uma temática veio à tona em nossas aulas introdutórias sobre os agentes ambientais. Numa discussão acirrada sobre os efeitos dos riscos químicos na saúde dos trabalhadores, uma aluna trouxe uma questão no mínimo polêmica, e que suscitou um pouco de pesquisa: o uso do leite como elemento de desintoxicação dos trabalhadores submetidos a agentes químicos.
Foram bons momentos de buscar razões e opiniões, com bastante diversão. Eu, munido da experiência de quem já viveu alguns mitos pela vida fora, de imediato refutei: “Não sei de comprovação científica sobre esse benefício imputado ao leite como desintoxicante”! Mas uma aluna me afirmou que seu pai havia muito tempo recebeu leite da empresa diariamente porque trabalhava em setor de pintura, e o produto era fornecido gratuitamente pela empresa. Ah, e ainda mais, com a indicação do médico da empresa. São destas coisas que nos espantam, quando somos pegos de surpresa por histórias assim. Retruquei à aluna: “Certamente essa empresa deve ter calculado os custos de implantação das medidas de proteção coletiva que reduzissem os níveis de exposição dos trabalhadores, e achou mais viável o fornecimento do leite do que o investimento em medidas de segurança”.
E não são raras as empresas que se valem desta estratégia; fazer uso do pouco conhecimento do trabalhador, iludindo-o com mitos que nos tempos atuais estão totalmente desbancados.
Aproveito o ensejo para trazer aqui uma pequena história muito interessante do advogado trabalhista paranaense e técnico de segurança do trabalho, J. Berbes Farias, em “Memórias de um velho TST”, publicada no seu blog http://www.seesmt.blogspot.com/.
Por volta de 1985 troquei de emprego, outro bem melhor, salário triplicado. Saí de um grupo de empresas - construção civil, concreteira e metalurgia - para ingressar nessa indústria metalúrgica, com aproximadamente 300 empregados, no cargo de Gerente de Pessoal.
Logo no primeiro dia de trabalho me deparei com uma cena interessante, um caminhão descarregava algumas caixas de leite em saquinhos de um litro, três caixas com duas duzias de litros cada um. Perguntando me informaram que era o leite para o pessoal da galvanoplastia, dois litros para cada um, trinta funcionários, o que totalizava em torno de sessenta litros por dia.
No horário do primeiro intervalo para repouso, na parte da manhã, os operários da galvanoplastia formavam um fila na porta da cozinha para pegar a quota diária do leite que levavam direto para o setor onde trabalhavam.
Pedro Murski era um alemão, quase dois metros, cabelo amarelo e braços peludo parecia um urso branco, boa gente, simpático, comunicativo sempre nos visitava no departamento pessoal, invariavelmente uma vez por semana para pedir um vale por conta do pagamento. A empresa nesse ponto era uma mãe e permitia esse tipo de benefício.
Um dia, aproveitando a visita do ursão, pensando em usá-lo como locutor da rádio peão, disse para ele que a empresa estava pensando em suspender a entrega do leite para o pessoal da galvanoplastia.
Assustado ele perguntou o por quê dessa decisão e eu tentei explicar-lhe que o leite não tinha nenhuma propriedade antídota contra os produtos químicos que existiam naquele setor, ao contrário, contribuiam para a inalação daqueles produtos químicos diretamente para o estômago; que o leite não ia para os pulmões, para onde eram inalados os produtos quimicos, etc, e tal.
Tal foi a minha surpresa quando, depois dessa explicação, quase em lágrimas o alemão pediu para que eu não fizesse isso, que esse leite iria fazer falta para ele que tinha cinco filhos, que todos os dias na hora do almoço ele levava aqueles dois litros de leite para as crianças que estavam esperando.
Santo Deus. O coração numa mão e o cérebro na outra. Eu tinha o poder de decidir.
E a pior notícia ainda ele não sabia e nem eu tive coragem para informá-lo: O adicional de insalubridade também iria ser suspenso tendo em vista que as novas instalações eram modernas, havia exaustão suficiente e novos equipamentos de proteção de respiração estariam sendo utilizados no mês seguinte.
Acontece que, mesmo contra a minha vontade e sem minha autorização a notícia da suspensão do leite e do adicional de insalubridade "vazou".
Fiquei sabendo do vazamento da notícia no final do expediente, por volta das dezoito horas saindo no portão da empresa fui cercado por trinta operários que queriam ter uma "conversinha" comigo. Que estória era essa, perguntou um deles, de tirar do nosso salário o adicional de insalubridade, vai ter que explicar direitinho disse o "tição" negrinho de um metro e meio de altura e dois de valentia; e fui sendo cercado, aquado, tô ferrado, pensei.
Pensei rápido e disse:
- calma pessoal! não é nada disso, apenas vamos trocar o nome do vencimento, o adicional de insalubridade vai ser somado no salário, ninguém vai perder nada, no final do mês o valor vai ser o mesmo.
- Há bão! disse um deles.
Devagarinho eu fui explicando,os outros foram entendendo, eu suando mas ao final tudo certo.
Resumindo tive que convencer a diretoria da empresa para que se somasse o valor do adicional de insalubridade e de quarenta e cinco litros de leite no salário de cada um deles, extinguindo assim a entrega diária de leite e o famigerado adicionalde insalubridade, sem alterar o valor final do salário de cada um deles.
Os novos empregados não receberiam o adicional.
Ficaram todos felizes e eu livrei meu couro.
Um comentário:
Muito estimado mestre Jairo,
pode parecer paradoxal, mas com o maturar dos anos nós professores somos mais aprendentes. Talvez. A humildade intelectual nós faz mais abertos a aprender.
Permito-me usar nesta constatação a autoridade de quem completa seu 51º ano de magistério, em sala de aula e agora readmitido pelo Centro Universitário Metodista, do IPA (ver edição de sexta-feira).
Com estima
attico chassot
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