Boate Kiss antes da tragédia de janeiro de 2013 |
Em algumas
horas, os escombros e os relatos dos sobreviventes da boate Kiss conduziam a
uma constatação inevitável: a morte de uma centena de jovens durante a
madrugada – e as que, lamentavelmente, viriam em seguida – não foi uma
fatalidade. Erros em sequência, negligência e omissão do poder público
convergiram para que uma casa noturna de grande movimento operasse por tanto
tempo com superlotação, sem área de escape, com materiais inadequados e uma
atividade de alto risco, como é o uso de fogos de artifício em ambientes
fechados. Os sinais de que a catástrofe foi construída pela mão do homem se
confirmaram, e ganharam tons dramáticos, quando foi comprovada a causa da morte
de grande parte das vítimas, o envenenamento por gás cianídrico – o cianeto, o
mesmo usado nas câmaras de gás nazistas.
As provas e
os pormenores do incêndio que matou 242 pessoas e traumatizou o Brasil estão
reunidos em 13.000 páginas de um inquérito policial. Os efeitos práticos da
investigação, no entanto, ainda não vieram: dos 32 indiciados, nenhum está
preso, e ninguém recebeu indenizações pelas perdas causadas pelo desastre.
Cenas de terror na noite de janeiro de 2013 |
Donos da
casa noturna, bombeiros e integrantes da banda Gurizada Fandangueira estão em
liberdade, à espera da definição de seus destinos pela Justiça - o que, por
enquanto, sequer tem data para acontecer. Trata-se de um processo longo, e o
Brasil não está sozinho nesse caso: nos Estados Unidos, onde em 2003 houve
tragédia semelhante à da Kiss, as prisões levaram pelo menos três anos. Apesar
do alto poder de letalidade de se manter centenas de pessoas em um local que
pode ser incinerado em questão de minutos, comprovar responsabilidades nesse
caso é algo mais complexo e demorado, admitem especialistas.
Em Santa
Maria, o prefeito Cezar Schirmer e outros servidores municipais inicialmente
citados pela Polícia Civil acabaram excluídos da lista – segundo o entendimento
do Ministério Público, eles não tiveram responsabilidade direta na tragédia.
Mas a conduta do poder público em relação às atividades de licenciamento e
fiscalização ainda alimentam dúvidas. Os policiais trabalham em duas
investigações, ambas com foco em acontecimentos anteriores ao incêndio.
Segundo
a delegada Luiza Santos Souza, responsável pelos inquéritos da Kiss, os
policiais verificam suspeitas de crime ambiental e de problemas na documentação
da boate. “Constatamos que, em nenhum momento, a boate Kiss funcionou com todas
as licenças necessárias”, informa a delegada. “A boate nunca parou de
funcionar. Nenhum dia. Nunca teve os documentos necessários. Sofreu 11
notificações do município”, critica Luiz Fernando Smaniotto, um dos advogados
da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa
Maria (AVTSM).
As licenças
pesquisadas pela delegada incluem: Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), laudo
técnico de isolamento acústico, licenciamento ambiental, alvará sanitário e,
por fim, alvará dos bombeiros. Todos os itens, afirma, têm suspeitas de
irregularidades.
Os pontos
são comuns às duas linhas de investigação. Uma delas apura fraude no EIV: os
primeiros donos da Kiss teriam forjado uma consulta aos vizinhos do
estabelecimento para atestar a ausência de problemas de poluição sonora. À
época da inauguração da casa noturna, em julho de 2009, houve queixas de
barulho excessivo – independentemente de qualquer medição, os vizinhos da casa
noturna relatam que não conseguiam dormir nas noites de funcionamento da boate.
Então
proprietário da Kiss, o engenheiro Tiago Flores Mutti e seu pai, Santiago,
colheram 60 assinaturas para refutar as reclamações de ruídos e assegurar a
manutenção das atividades. A iniciativa funcionou, mas agora a polícia aponta
supostas irregularidades como assinaturas duplicadas, não-identificadas,
originárias de lojas e supermercados que não funcionam à noite e, ainda, de
pessoas estabelecidas longe da boate. Mutti, porém, nega qualquer fraude.
A partir
destes indícios, a polícia iniciou outra investigação: a documentação da Kiss.
Vieram à tona procedimentos como a troca de endereço da boate na documentação
protocolada na prefeitura, no início de 2010. Como havia problemas com o número
1.935 da Rua dos Andradas, os proprietários trocaram a numeração para 1.925. “A
partir daí, a boate ganhou alvará de localização, sem todos os documentos
prévios”, lembra o advogado Smaniotto.
A
prefeitura, no entanto, diz desconhecer qualquer irregularidade. “Não vi o
inquérito, só sei o que vejo nos jornais. Não tem nada oficial de investigação
contra o prefeito. Não posso responder o que é boato, hipótese. Recebi mais de
30 ofícios da polícia com mais de 2.000 perguntas, especialmente sobre datas e
horários, e respondemos tudo”, assegura Schirmer.
Luiza
explica que as apurações mais recentes começaram em maio, de forma reservada, e
vão se estender até fevereiro. Esta parte do trabalho policial acumula 4 mil
páginas, divididas em 14 volumes, fruto de mais de 150 testemunhos.
Quando a
polícia encerrar o trabalho em andamento, caberá ao Ministério Público (MP)
decidir se abre processo. O órgão, aliás, é criticado nos bastidores, já que
permitiu um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a colocação de espuma de
isolamento acústico na boate - material que, na madrugada do incêndio, liberou
o gás considerado pela perícia como responsável pelas mortes.
A imagem que cruzou o mundo mostrando a tragédia no RS |
O TAC,
aliás, está na origem de umas das poucas mudanças de regras e legislação
obtidas a partir da tragédia de Santa Maria. A nova lei de prevenção a
incêndios do Rio Grande do Sul prevê que este tipo de acordo só pode ser
firmado com o aval e o acompanhamento do Corpo de Bombeiros – a quem compete
fiscalizar a adequação de edificações e instalações.
Até agora,
correm processos nas esferas militar (bombeiros) e criminal (donos da boate e
outros réus). Mas a falta de uma punição prolonga a sensação de injustiça entre
as vítimas e pessoas de alguma forma afetadas pela tragédia. “Esperamos novos
indiciamentos em relação a estas possíveis omissões que serão apontadas”, diz o
advogado Smaniotto, que expressa um sentimento comum aos integrantes da
associação de vítimas. A delegada Luiza admite sua frustração e mantém reservas
sobre os desdobramentos das investigações em andamento. “Tem de comprovar dolo (culpa).
É complicado”, admite.
A demora,
algo previsto para casos de incêndio como o da boate Kiss, ocorre em casos
semelhantes em outros países. Em Rhode Island, nos Estados Unidos, cem pessoas
morreram na boate The Station, em 2003, em incêndio com características
parecidas com o de Santa Maria – lá, o fogo também começou com o manuseio de um
artefato pirotécnico. Foram necessários sete anos para que a Justiça
determinasse o pagamento de indenizações. A soma alcançou 176 milhões de
dólares, paga por 65 réus. Receberam dinheiro 329 pessoas - o maior valor
alcançou 7,7 milhões de dólares. Coube a uma emissora de TV local a tarefa de
assinar o cheque mais polpudo, de cerca de 30 milhões. Conforme as
investigações, o trabalho de um repórter cinematográfico atrapalhou a evacuação
da boate.
Sendo
assim, espera-se que a justiça seja feita e que os verdadeiros culpados sejam
chamados a pagar pelos crimes cometidos e cada qual responda pelos danos causados
economicamente e socialmente a todas estas famílias. É isso que todos, vítimas e sociedade em geral, aguardam ansiosos para os próximos anos. Pelo menos para amenizar a dor e a sensação de impunidade que graça em todo canto.
Fonte: Revista Veja - Edição de 26.01.14
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