20 dezembro 2014

MARCELO E A CONDIÇÃO HUMANA



O mundo contemporâneo é pleno em tecnologias
Em rodas de conversas com amigos e colegas costumo não depreciar o mundo em que vivemos, até porque acredito que a evolução faz de nós sujeitos de bastante virtude e muitas benesses em relação aos nossos antepassados. Penso que se meu avô Arnaldo, pai de minha mãe e descendente de bugres lá do Cacequi, falecido na década de 1970, voltasse novamente à vida e se deparasse com tudo que temos de tecnologia ficaria estarrecido. Pudera eu contar a ele que temos uma ferramenta minúscula, o telefone móvel, que possui várias dentro dela: telefone, calculadora, câmera fotográfica, gravador de voz, agencia bancária, gps, previsão do tempo, chama-táxi, bloco de notas e etc, etc, etc...

Mas o mundo de hoje também possui algumas surpresas e mazelas que nos deixam preocupados com o que pode dele decorrer. Quando José Lutzenberger, aquele ambientalista responsável pelos primeiros movimentos em defesa da natureza e do planeta aqui no Brasil, falava da importância não somente de se cuidar dos recursos naturais disponíveis, mas que também se devia exercer um controle da natalidade, foi duramente criticado, principalmente pelos organismos religiosos.

A criminalidade também está associada à gravidez precoce



Sei que o tema é polêmico e complexo, mas hoje sou adepto da natalidade com responsabilidade na ótica do que apregoava Lutzenberger, tendo em vista a escassez de recursos e a disputa que se vislumbra no futuro por água, por alimentos e por várias outras soluções como saúde, educação, segurança, etc. Mas este controle passa por uma refinada capacitação da população jovem que, na maioria das vezes, não entende a responsabilidade de gerar um ser humano e por ele estar comprometido desde a concepção. É cada vez mais comum a gravidez na adolescência e um sem número de crianças abandonadas ou relegadas à criação pelos avós. Sabe-se que este é um dos maiores motivos no aumento da criminalidade, principalmente entre adolescentes.

Pois esta semana fomos surpreendidos com uma notícia que reflete a realidade acima comentada. Um querido colega de docência teve seu carro e pertences roubados, e ainda foi alvejado pelas costas ao ser retirado do veículo. O engenheiro Marcelo Lucca, que também atua em cursos técnicos na região metropolitana, foi atacado em Gravataí e liberado somente horas depois num local ermo de Viamão. E não fosse sua sagacidade num momento de extremo desespero, talvez não tivesse retornado ao nosso convívio. O seu relato disponibilizado numa das mídias sociais me impactou de tal maneira que pedi a ele que me permitisse reproduzi-lo aqui. Traz o pensamento de Hannah Arendt, autora que me sensibilizou depois da leitura de "A Condição Humana", há cerca de quatro anos. Vejam o que o Marcelo escreve sobre o ocorrido:

“Ao assistir o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt poderia ser apenas mais uma judia na plateia que estava ali para aliar sua voz ao clamor que pedia a execução sumária do oficial da SS.
 
Hannah Arendt, uma estudiosa da condição humana
Mas Hannah não estava lá para gritar e vociferar - e se o fizesse teria legitimidade para tal, pois ela mesma havia conseguido fugir de um campo de concentração. Ela foi uma das principais pensadoras do século XX, e diante da ignomínia que se apresentava naquela Corte, ela fez o que tinha que fazer: pensou e refletiu. Assim pode constatar que Eichmann era um idiota, alguém que seguia o modelo imposto e que não questionava um sistema que organizava de forma industrial a morte de pessoas.

Hannah nominou esta lógica idiota e doente de “banalização do mal”, ou seja: alguém segue a ordem, ou o sistema, ou a lei, sem raciocinar sobre os resultados que daí advirão. Mais do que aceitar o mal, quem assim age recusa-se a pensar.

Bem antes de Hannah Arendt, outros filósofos disseram que pensar é o que define o ser humano, e ao recusar-se ao pensamento, estamos recusando nossa condição humana.

Ela estabeleceu este conceito há mais de 50 anos, porém mais do que nunca, a “banalização do mal” continua em grande evidência. Quando a violência toca alguém, rouba, viola sua privacidade ou fere seu corpo, vemos como algo banal, frequente, quase rotineiro.

Quando o roubo, a violência e o ferimento é em nós, o sentimento exclui qualquer racionalidade, e nos sentimos legitimados a vingar, retalhar, repor o estado dito normal das coisas.

Fui tomado de assalto, quando saia de um momento de lazer após o trabalho. Tive meu patrimônio subtraído, e procurei agir como o sistema determina: não reagi, não apelei à racionalidade ou à piedade do assaltante, não enfrentei. Segui as determinações e, mesmo assim, ele descumpriu o pacto ao qual ele não foi chamado a assinar: quando eu saia do carro, fui alvejado pelas costas, no flanco direito inferior do abdômen.

Cai sobre a estrada de terra, ouvi o segundo disparo e vi o carro afastando-se rapidamente, agora nas mãos daquele que cumpre seu papel em um sistema igualmente idiota, e no qual ele é também um idiota, imbecil e que não pode sequer questionar sua própria condição.

O que pode te salvar ? É o saber. Saber como agir, o que fazer. Isso é que te faz não ser um idiota servil de um sistema de repetição.

Levantei, verifiquei os danos: um buraco de bala pelas costas, no flanco inferior direito do abdômen e outro pela frente, indicando a saída do projétil. E ou outro tiro ? Sei lá onde foi parar.

Marcelo auxilia aluna no uso de EPIs
Dobrei o indicador da mão direita e enfiei no furo das costas. Fiz o mesmo com o indicador esquerdo e enfiei no furo que tinha pela frente e andei. Andei em busca de ajuda, pois tinha apenas uma convicção: não ficaria sangrando no chão de uma estrada, não sou um idiota, não compactuo com o sistema de reprodução de violência.

Andei muito. A noite já avançava, então veio um carro. Estrada escura, ele não parou no primeiro momento. Novamente percebi que eu era um clichê, um ator barato de uma cena já vista: um homem desconhecido acenando em uma estrada deserta pedindo ajuda. Então resolvi fugir ao roteiro: me ajoelhei, e de mãos postas, gritei pedindo ajuda.

Ele parou em uma distância segura (para ele), abriu a porta e perguntou o que estava acontecendo.

A informação precisa ser clara, objetiva e compreensível para o receptor.

- Meu nome é Marcelo Lucca, fui assaltado e baleado, por favor ligue para o meu irmão no fone XXX, ou para o fone XXX e fale com meus colegas. Chame a polícia ou alguém para me ajudar.

Ele me ajudou.
Um pedreiro, um trabalhador, chegando tarde do trabalho, que naquela noite não foi mais um idiota cumprindo seu papel no sistema em que o mal é algo banal.

Ele não se recusou a pensar.

Com a ajuda de um outro rapaz que surgiu, me levaram a um hospital próximo. Lá no hospital logo chegou meu irmão, meus colegas, e depois dos primeiros procedimentos, fui removido para outro hospital, onde pude ser melhor atendido.

Hoje sai caminhando do hospital e estou em casa. Hoje estou vivo, estou bem, estou muito bem, e ansioso para agradecer a todos , abraçar os amigos, e principalmente prosseguir desfrutando de tudo que ainda tenho nesta vida que se descortina mais uma vez à frente.”

No tocante a comentar o relato do Marcelo, prefiro deixar a reflexão para meus leitores, em relação à posição que acreditam seja mais conveniente. 

Marcelo Lucca explica o uso de EPIs na Roan de Canoas
Logo que soube do ocorrido lembrei-me de algumas atividades que fizemos este ano, reunindo alunos e alunas para uma aula em conjunto sobre os Equipamentos de Proteção Individual em Canoas. Foi um momento muito interessante em que pude compartilhar conhecimentos com o Marcelo. Ele também me deixou honrado ao solicitar o Guia do Técnico em Segurança do Trabalho autografado para levar ao seu orientador de Mestrado na Espanha.

Marcelo! Fico feliz com teu retorno e tomara que possamos outras vezes mais dividir estes momentos. Fica a esperança de que, como agentes de uma educação transformadora, consigamos modificar um pouco esta realidade atual prenhe de insegurança e de violência que por vezes se abate sobre nós.
      

Um comentário:

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jairo,
alio-me as tuas alegrias pelo Marcelo ter se safado. Por outo lado me entristece, e sou solidário contigo, de como estamos em termos da de condição humana. Bem lembrada a Hannah Arendt.
achassot