Alguns acontecimentos em nossa vida deixam marcas para sempre |
Eu contava 11 anos de
idade nos idos de 1967, quando este fato ocorreu.
Primeiro preciso
dizer que, desde os anos da minha infância tive participação ativa, levado por
meus pais, em um centro de tradições gaúchas de minha cidade, Canoas, aqui no
Rio Grande do Sul. Por ter frequentado aulas de música desde cedo, me habilitei
na função de “gaiteiro” (ou “acordeonista”, como querem os profissionais desta
arte) da “Invernada Mirim” do CTG, como se chamam os grupos de dança folclórica
gaúcha aqui no Estado.
Os convites
aconteciam para apresentações do grupo em inúmeros lugares. E toda vez que isso
ocorria, lá estava eu com o acordeon acompanhando a equipe de dançarinos da
tradição gaúcha. Isso aqui no Estado é muito forte, um sentimento capaz de unir
a população em defesa da cultura e da tradição local. Foi assim na maioria dos
eventos que permearam a história do Estado; mais recentemente pode-se
exemplificar a “Campanha da Legalidade”, comandada pelo governador Leonel
Brizola em 1961 em prol do presidente João Goulart, e que abortou o primeiro
golpe pretendido pelos militares na democracia. Embora o êxito tenha sido alcançado em meados de 1964.
Desde sua fundação em 1965, o CTG Brazão do Rio Grande sempre foi muito requisitado |
Pois
neste ano de 1967, o CTG Brazão do Rio Grande, assim se chama até hoje, brasão
com “z” mesmo, era convidado para uma apresentação ao governador e ao comando militar do
Estado. Na época, ocupava o Palácio Piratini, Walter Peracchi Barcelos. Em
1948 assumiu o comando geral da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Foi
também chefe da casa militar de Cordeiro
de Farias, deputado estadual pelo Partido
Social Democrático eleito em 1950 e 1954. Em 1958, concorreu ao governo estadual, pela UDN, sendo derrotado pelo candidato do PTB, Leonel
Brizola. Elegeu-se deputado federal em 1962. Em 1964, participou das articulações entre militares e os
setores conservadores brasileiros que culminaram no golpe de 31 de março. Durante a ditadura
militar foi ministro
do Trabalho e Previdência Social (no governo Castelo Branco) e governador do Rio Grande do Sul.
Depois da cassação de Ildo
Meneghetti, Peracchi foi indicado por Brasília e aceito pela Assembléia Legislativa do estado, então
dominada, após sucessivas cassações, pela ARENA, partido de sustentação política civil do regime de
exceção em curso. Seu mandato durou de 12 de
setembro de 1966 até 15 de
março de 1971.
Sobre a apresentação do grupo de danças, alienados como
éramos na época, por falta de informações e pela rejeição às questões
políticas, tanto por parte da família quanto do grupo de amigos, sequer eu tinha noção de fatos que somente mais tarde tomaria conhecimento, na
medida em que estudava e tinha gosto pela leitura. Por isso mesmo, acredito
indubitavelmente que só o conhecimento é capaz de nos libertar. O que importava
naquele momento era a magnitude do evento, indiferentemente da situação
política instalada no país.
Mas o que mais me chamou a atenção naquela ocasião, foi o
local onde ocorreu o evento. Tinha um nome muito estranho: Ilha do Presídio (hoje este mesmo acidente
geográfico natural se denomina Ilha das Pedras Brancas), localizada
praticamente na parte central do Rio Guaíba o grande espelho dágua
que caracteriza a capital gaúcha.
Desativada desde 1983, a Ilha do Presídio ainda conserva as ruínas das celas que confinaram os presos políticos |
Chegamos no cais próximo ao pier do Clube Veleiros do
Sul, no bairro Ipanema pela manhã cedo, não recordo a hora exata, onde já aguardava um barco especialmente destinado ao
nosso transporte. Lembro-me ainda das recomendações iniciais do comandante para
a viagem, e que foram reforçadas por meus pais durante o trajeto, para
que não nos aproximássemos das laterais da embarcação, evitando assim uma queda
acidental na água.
As ilhas sempre me pareceram um lugar de fantasia. A mim parecia que estes lugares eram habitados por pessoas sempre alegres e felizes com a condição de recursos fartos e isentos da realidade urbana. Também
nunca havia navegado em uma embarcação daquele tamanho e naquela quantidade
imensa de água. Jamais tinha visitado uma ilha. Somente havia visto em imagens
e figuras de livros e revistas. E nesta minha visão as ilhas eram
lugares mágicos, onde somente coisas boas aconteciam.
Mas o que mais me impressionou neste dia foi o cenário vislumbrado, tão logo desembarcamos. Alguns militares, responsáveis pela
manutenção dos presidiários na ilha, nos levaram às celas para ver como eram as
acomodações. Depois, analisando o motivo da visita, tive a impressão de que era
para demonstrar a bondade da administração para com os encarcerados.
Talvez, também em época posterior, a nós crianças, não fosse permitida
essa agressão, pois confesso que fiquei abalado com as cenas degradantes que
assisti e vivi. Amontoados naqueles espaços reduzidos, alguns presos enfiavam as
mãos por entre as grades tentando nos alcançar nos corredores estreitos por onde
circulávamos. Às vezes imploravam cigarros, e um e outro com sorriso desdentado e
com semblantes tristes e horrorizantes, outras vezes pareciam clamar pelas chaves dos pesados ferrolhos. Lembro ainda que minha mãe, à época
fumante, entregou sua carteira de cigarros a um deles.
Bem, dali nos deslocamos para o local da apresentação e
do almoço que o governador e os militares proporcionariam a nós, seus convidados, em
agradecimento. As mesas foram dispostas num local aberto da ilha, que exceto
pelo destino que lhe deram como presidio, era um lugar paradisíaco. Era próximo
das 11 horas da manhã e iniciamos as danças folclóricas, com efusivos aplausos
do público assistente. Logicamente que, aos presos nao houve qualquer
regalia para que assistissem nossa performance.
A obra de Ricardo Amaral conta a trajetória da primeira mulher presidente do Brasil |
Depois da apresentação foi servido o almoço, e na
metade da tarde retornamos na mesma embarcação que nos levou, agora
em direção à capital. Confesso meu trauma nesta jornada,
muito mais do que um domingo divertido.
Pois bem! Passados 45 anos deste episódio, em minhas
leituras regulares, recentemente adquiri na Livraria Cultura do Bourbon Country
a obra de Ricardo Batista Amaral, “A vida quer é coragem”. O objetivo era ter
contato com a trajetória da presidenta Dilma Rousseff, narrativa ricamente
construída pelo autor e indicada por uma colega docente. Qual não foi minha
surpresa ao ler o capítulo 7, denominado “Começar de novo”, onde me senti
também personagem da história. Na
introdução do capítulo, o texto traz uma recordação da presidente Dilma:
O deputado Carlos Araújo foi enclausurado na Ilha do Presídio durante a ditadura militar |
“Quando saí da cadeia, eu senti uma
coisa muito forte; eu senti uma grande solidão. Quem eu conhecia
ou estava na cadeia, ou tinha saído do Brasil ou estava morto”, recordou
a ministra Dilma Rousseff em agosto de 2009 (numa entrevista ao
cineasta Silvio Tendler). No começo de 1973, a solidão tinha para ela a
forma exata de uma ilha no meio do Guaiba, em Porto
Alegre. A Ilha do Presídio, como era chamada, foi
onde mataram o sargento Manoel Raimundo Soares, primeiro preso político
assassinado pela ditadura, em 1966. Sete anos depois, servia de cárcere para os
remanescentes da guerra que a esquerda armada perdeu – entre eles, Carlos
Araújo, transferido para lá quando desativaram o Presídio
Tiradentes. Os pais dele, Afranio e Marieta, viviam numa casa ampla,
mas sem luxos, numa curva à beira-rio no bairro Assunção. Dilma foi
morar com eles no começo do ano para ficar mais perto de Carlos. Do
quintal da casa ela podia ver, bem nítida no Guaíba, a ilha onde o
companheiro estava preso. (p. 88)
Um arrepio percorreu minha
espinha, no momento em que tomei conhecimento do trecho do livro, e que
me levou a recordar aquela passagem. Senti um misto de revolta e de
cumplicidade. Depois, me apossou um sentimento de incapacidade em retroagir no
tempo para reparar uma etapa da história. Eu havia estado no lugar que se
tornara o reduto de aprisionamento de contestadores do mais longo regime de
exceção brasileiro; um lugar de sofrimento e de torturas. Sem que eu tivesse
noção daquela realidade, faço parte desta história que muito ainda necessita de
esclarecimentos, de forma que nunca mais se repita conosco e quiçá com nossa
descendência.
4 comentários:
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Meu caro Jairo,
li e reli emocionado a tessitura que fazes mediada por 45 anos de distância.
Não sabia da obra de Ricardo Batista Amaral, “A vida quer é coragem”. Muito bem posta tua conexão.
Mesmo tendo lido no sábado não postei então o comentário pois neste período de férias estou fazendo um pouco de abstinência da internet.
Admiração reconhecida por esta postagem
attico chassot
A pior da democracia é melhor do que o melhor de uma ditadura.
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