18 janeiro 2013

A DITADURA NA MINHA VIDA


Alguns acontecimentos em nossa vida
deixam marcas para sempre
Alguns acontecimentos na vida da gente são marcantes. Sejam eles inesquecíveis pela surpresa que nos causam por situação insólita nunca antes vivenciada, sejam pela experiência que são capazes de agregar à nossa existência. Alguns deles, ainda, nos trazem muita satisfação e alegria pelo ineditismo, outros são capazes de traumatizar dependendo da ocasião e da nossa preparação em vivenciá-los.   


Eu contava 11 anos de idade nos idos de 1967, quando este fato ocorreu.


Primeiro preciso dizer que, desde os anos da minha infância tive participação ativa, levado por meus pais, em um centro de tradições gaúchas de minha cidade, Canoas, aqui no Rio Grande do Sul. Por ter frequentado aulas de música desde cedo, me habilitei na função de “gaiteiro” (ou “acordeonista”, como querem os profissionais desta arte) da “Invernada Mirim” do CTG, como se chamam os grupos de dança folclórica gaúcha aqui no Estado.


Os convites aconteciam para apresentações do grupo em inúmeros lugares. E toda vez que isso ocorria, lá estava eu com o acordeon acompanhando a equipe de dançarinos da tradição gaúcha. Isso aqui no Estado é muito forte, um sentimento capaz de unir a população em defesa da cultura e da tradição local. Foi assim na maioria dos eventos que permearam a história do Estado; mais recentemente pode-se exemplificar a “Campanha da Legalidade”, comandada pelo governador Leonel Brizola em 1961 em prol do presidente João Goulart, e que abortou o primeiro golpe pretendido pelos militares na democracia. Embora o êxito tenha sido alcançado em meados de 1964.

Desde sua fundação em 1965, o CTG Brazão do Rio
Grande sempre foi muito requisitado
Pois neste ano de 1967, o CTG Brazão do Rio Grande, assim se chama até hoje, brasão com “z” mesmo, era convidado para uma apresentação ao governador e ao comando militar do Estado. Na época, ocupava o Palácio Piratini, Walter Peracchi Barcelos. Em 1948 assumiu o comando geral da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Foi também chefe da casa militar de Cordeiro de Farias, deputado estadual pelo Partido Social Democrático eleito em 1950 e 1954. Em 1958, concorreu ao governo estadual, pela UDN, sendo derrotado pelo candidato do PTB, Leonel Brizola. Elegeu-se deputado federal em 1962. Em 1964, participou das articulações entre militares e os setores conservadores brasileiros que culminaram no golpe de 31 de março. Durante a ditadura militar foi ministro do Trabalho e Previdência Social (no governo Castelo Branco) e governador do Rio Grande do Sul.


Depois da cassação de Ildo Meneghetti, Peracchi foi indicado por Brasília e aceito pela Assembléia Legislativa do estado, então dominada, após sucessivas cassações, pela ARENA, partido de sustentação política civil do regime de exceção em curso. Seu mandato durou de 12 de setembro de 1966 até 15 de março de 1971.


Sobre a apresentação do grupo de danças, alienados como éramos na época, por falta de informações e pela rejeição às questões políticas, tanto por parte da família quanto do grupo de amigos, sequer eu tinha noção de fatos que somente mais tarde tomaria conhecimento, na medida em que estudava e tinha gosto pela leitura. Por isso mesmo, acredito indubitavelmente que só o conhecimento é capaz de nos libertar. O que importava naquele momento era a magnitude do evento, indiferentemente da situação política instalada no país.


Mas o que mais me chamou a atenção naquela ocasião, foi o local onde ocorreu o evento. Tinha um nome muito estranho: Ilha do Presídio (hoje este mesmo acidente geográfico natural se denomina Ilha das Pedras Brancas), localizada praticamente na parte central do Rio Guaíba  o grande espelho dágua que caracteriza a capital gaúcha.
Desativada desde 1983, a Ilha do Presídio ainda conserva
as ruínas das celas que confinaram os presos políticos

Chegamos no cais próximo ao pier do Clube Veleiros do Sul, no bairro Ipanema pela manhã cedo, não recordo a hora exata, onde já  aguardava um barco especialmente destinado ao nosso transporte. Lembro-me ainda das recomendações iniciais do comandante para a viagem, e que foram reforçadas por meus pais durante o trajeto, para que não nos aproximássemos das laterais da embarcação, evitando assim uma queda acidental na água.


As ilhas sempre me pareceram um lugar de fantasia. A mim parecia que estes lugares eram habitados por pessoas sempre alegres e felizes com a condição de recursos fartos e isentos da realidade urbana. Também nunca havia navegado em uma embarcação daquele tamanho e naquela quantidade imensa de água. Jamais tinha visitado uma ilha. Somente havia visto em imagens e figuras de livros e revistas. E nesta minha visão as ilhas eram lugares mágicos, onde somente coisas boas aconteciam.

 
Mas o que mais me impressionou neste dia foi o cenário vislumbrado, tão logo desembarcamos. Alguns militares, responsáveis pela manutenção dos presidiários na ilha, nos levaram às celas para ver como eram as acomodações. Depois, analisando o motivo da visita, tive a impressão de que era para demonstrar a bondade da administração para com os encarcerados. Talvez, também em época posterior, a nós crianças, não fosse permitida essa agressão, pois confesso que fiquei abalado com as cenas degradantes que assisti e vivi. Amontoados naqueles espaços reduzidos, alguns presos enfiavam as mãos por entre as grades tentando nos alcançar nos corredores estreitos por onde circulávamos. Às vezes imploravam cigarros, e um e outro com sorriso desdentado e com semblantes tristes e horrorizantes, outras vezes pareciam clamar pelas chaves dos pesados ferrolhos. Lembro ainda que minha mãe, à época fumante, entregou sua carteira de cigarros a um deles.


Bem, dali nos deslocamos para o local da apresentação e do almoço que o governador e os militares proporcionariam a nós, seus convidados, em agradecimento. As mesas foram dispostas num local aberto da ilha, que exceto pelo destino que lhe deram como presidio, era um lugar paradisíaco. Era próximo das 11 horas da manhã e iniciamos as danças folclóricas, com efusivos aplausos do público assistente. Logicamente que, aos presos nao houve qualquer regalia para que assistissem nossa performance.


A obra de Ricardo Amaral conta a trajetória da
primeira mulher presidente do Brasil
Depois da apresentação foi servido o almoço, e na metade da tarde retornamos na mesma embarcação que nos levou, agora em direção à capital. Confesso meu trauma nesta jornada, muito mais do que um domingo divertido. 


Pois bem! Passados 45 anos deste episódio, em minhas leituras regulares, recentemente adquiri na Livraria Cultura do Bourbon Country a obra de Ricardo Batista Amaral, “A vida quer é coragem”. O objetivo era ter contato com a trajetória da presidenta Dilma Rousseff, narrativa ricamente construída pelo autor e indicada por uma colega docente. Qual não foi minha surpresa ao ler o capítulo 7, denominado “Começar de novo”, onde me senti também personagem da história.  Na introdução do capítulo, o texto traz uma recordação da presidente Dilma:

O deputado Carlos Araújo foi enclausurado
na Ilha do Presídio durante a ditadura militar 
 “Quando saí da cadeia, eu senti uma coisa muito forte; eu senti uma grande solidão. Quem eu conhecia ou estava na cadeia, ou tinha saído do Brasil ou estava morto”, recordou a ministra Dilma Rousseff em agosto de 2009 (numa entrevista ao cineasta Silvio Tendler). No começo de 1973, a solidão tinha para ela a forma exata de uma ilha no meio do Guaiba, em  Porto Alegre. A Ilha do Presídio, como era chamada, foi onde mataram o sargento Manoel Raimundo Soares, primeiro preso político assassinado pela ditadura, em 1966. Sete anos depois, servia de cárcere para os remanescentes da guerra que a esquerda armada perdeu – entre eles, Carlos Araújo, transferido para lá quando desativaram o Presídio Tiradentes. Os pais dele, Afranio e Marieta, viviam numa casa ampla, mas sem luxos, numa curva à beira-rio no bairro Assunção. Dilma foi morar com eles no começo do ano para ficar mais perto de Carlos. Do quintal da casa ela podia ver, bem nítida no Guaíba, a ilha onde o companheiro estava preso. (p. 88)

Um arrepio percorreu minha espinha, no momento em que tomei conhecimento do trecho do livro, e que me levou a recordar aquela passagem. Senti um misto de revolta e de cumplicidade. Depois, me apossou um sentimento de incapacidade em retroagir no tempo para reparar uma etapa da história. Eu havia estado no lugar que se tornara o reduto de aprisionamento de contestadores do mais longo regime de exceção brasileiro; um lugar de sofrimento e de torturas. Sem que eu tivesse noção daquela realidade, faço parte desta história que muito ainda necessita de esclarecimentos, de forma que nunca mais se repita conosco e quiçá com nossa descendência.       

4 comentários:

Anônimo disse...

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Attico CHASSOT disse...


Meu caro Jairo,
li e reli emocionado a tessitura que fazes mediada por 45 anos de distância.
Não sabia da obra de Ricardo Batista Amaral, “A vida quer é coragem”. Muito bem posta tua conexão.
Mesmo tendo lido no sábado não postei então o comentário pois neste período de férias estou fazendo um pouco de abstinência da internet.
Admiração reconhecida por esta postagem
attico chassot

Thiago Chini disse...

A pior da democracia é melhor do que o melhor de uma ditadura.