14 maio 2011

QUEM DISSE QUE A ESCRAVIDÃO ACABOU?

Há alguns assuntos que volta e meia retomam nossa rotina, como se fossemos estimulados periodicamente a tratar deles sem que houvesse algum cronograma prévio ou algum planejamento estabelecido. E nas minhas aulas de segurança do trabalho, entre outros temas de prevenção à saúde e integridade física do trabalhador, o tema do Trabalho Escravo é bastante recorrente. Já parei para pensar o porquê dessa freqüência. E chego à conclusão que minha indignação com essa vergonha do comportamento humano é que tem sido a responsável pela catalisação. Então aprofundo um pouco mais a discussão quando observo um certo preconceito dos alunos. Em grande maioria crêem eles que somente nas regiões vizinhas à linha do Equador essa aberração acontece. E que no extremo Sul este comportamento há muito foi abolido, visto que a escravidão é sinônimo de atraso e subdesenvolvimento. E esse preconceito em relação ao Norte e Nordeste talvez seja o que mais me incomoda, pois em grande parte de minha vida profissional tive o prazer de conviver com o povo daquela região, quando trabalhei no Centro-Oeste, mais especificamente em Goiás.

A escravidão, desde as sociedades de Roma e Grécia, quando os povos eram submetidos a ela depois de vencidos nas batalhas, é a prática em que um ser humano assume direitos de propriedade sobre outro designado por escravo, ao qual é imposta tal condição por meio da força. Em alguns povos, desde os tempos mais remotos, os escravos eram legalmente definidos como uma mercadoria. Os preços variavam conforme as condições físicas, habilidades profissionais, a idade, a procedência e o destino. Aliás, isso o Brasil bem conhece, pois dos últimos países a abolir a prática. Mas hoje, essa escravidão também foi modernizada. Ela é sutil e muito bem conduzida por aqueles que se servem do pouco conhecimento de pessoas simples e humildes em busca de trabalho para sobrevivência.

É claro que o Trabalho Escravo se faz presente em várias regiões do país, principalmente naquelas onde prepondera o poder do coronelismo, tendo em vista a pouca participação popular nas decisões políticas regionais. Mas isso não é exclusividade das regiões Norte e Nordeste. O poder do coronelismo, que se aproveita da ignorância do pobre trabalhador braçal que não teve a oportunidade de melhores opções laborais, também ocorre no Sul pretensamente pós moderno, como alguns mais apressados podem achar. E as notícias de jornais, radio e televisão comprovam essa realidade.

Vejam essa noticia publicada na página da Radio Rural da cidade de Concórdia, no estado de Santa Catarina esta semana. Observem as condições do local onde os trabalhadores ficavam alojados:

“O Ministério Público Federal propôs Ação Penal contra três pessoas acusadas de reduzirem cerca de dez trabalhadores a condições análogas à de escravo, submetendo-os a jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho. A denúncia é do procurador da República em Concórdia, Andrei Mattiuzi Balvedi, e foi ajuizada contra Ademir de Oliveira, Luiz Carlos Sandrin e Odolir Canton.
Ao ser realizada diligência no final do no passado num aloja
mento de trabalhadores braçais, no município de Ipumirim, os fiscais do Ministério do Trabalho, juntamente com a Polícia Civil e Militar, encontraram os trabalhadores, que cortavam erva-mate, alojados num chiqueiro. No local, haviam várias baias, fezes de animais, falta de água potável, eletricidade e nenhuma condição de higiene e conforto. No alojamento não haviam portas, janelas, nem camas. Sem banheiro, os trabalhadores não tinham local para fazer a higiene pessoal. As necessidades eram feitas no mato e o banho era tomado no rio.
Os trabalhadores foram trazidos de União da Vitória, no Paraná, aliciados por Ademir, em veículo inapropriado. A viagem até Ipumirim foi realizada na ca
rroceria de um caminhão dirigido por funcionário contratado pelo réu. Conforme a denúncia, Ademir era o responsável por gerenciar e contratar as pessoas de União da Vitória para trabalharem em Ipumirim. Também existe comprovação de que Ademir tinha uma conta em um mercado da cidade e fazia a compra das refeições para os trabalhadores, que depois tinham os valores descontados em seus salários.”

Agora, outra notícia publicada no dia 22 de março na página do Portal de Notícias do Rio Grande do Sul. Atentem para o detalhe do texto em relação às condições em que trabalhavam essas pessoas:

“Depois de receber denúncias, uma força-tarefa do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério Público do Emprego (MPE) liberou 379 pessoas de situação de trabalho escravo. Dez empresas, quatro de Butiá e dez de Encruzilhada do Sul, foram multadas e assinaram termos de ajuste de conduta.
A força-tarefa verificou trabalhadores, em diversas empresas,
sem Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada ou qualquer controle de horário, submetidos a jornadas extensas de trabalho. Nos dias de chuva não se pagava a remuneração. Também não eram fornecidos equipamentos de proteção individual (EPIs) – foi constatado que os valores dos equipamentos eram descontados dos pagamentos aos empregados – e não havia fiscalização do seu uso. Sequer treinamento para as atividades com risco de acidente, como por exemplo a operação da motosserra, eram ministrados.
A operação ainda fiscalizou o corte e o descasque do eucalipto em empresa de Encruzilhada do Sul que fornecia o material extraído a uma madeireira de Venâncio Aires, constatando a inadequação do transporte, dos alojamentos e dos locais para refeição dos trabalhadores. Quatro trabalhadores foram retirados de um alojamento sem condição alguma de habitabilidade: além de coletivo e sem qualquer privacidade, os trabalhadores dormiam próximos a um botijão de gás, com frestas enormes nas paredes, sem água potável (utilizavam água de poço) e com banheiro no mato. Problemas semelhantes foram vistos nos locais em que eram realizadas as refeições, onde os empregados comiam sentados no chão sob a sombra das árvores, não
existia local para guardar a comida e o aquecimento das refeições era realizado no chão (em fogueiras).”

Posto tudo isso, cabe aqui refletir sobre a nossa realidade. É sabido que o Sul do país recebeu uma grande parcela da imigração européia ainda no século XIX, e que os imigrantes alemães e italianos são responsáveis por grande parte do crescimento econômico da região. E isso é comprovado com a distribuição eqüitativa da riqueza regional observada em municípios como Garibaldi, Carlos Barbosa, Santa Cruz do Sul, Novo Hamburgo entre tantos outros. Não quero aqui fazer referência aos municípios onde essa realidade é diferente. Mas as notícias acima já nos apontam o alvo de onde ocorre com mais freqüência essa aberração. Tenho observado que o sul e o extremo norte do nosso estado, pela concentração de atividades pecuárias e da monocultura, tem sido alvo constante de denúncias em relação ao trabalho escravo. E pude comprovar isso recentemente, quando a serviço de uma entidade de treinamento regional, ministrei duas palestras numa mesma semana, para pequenos agricultores de uma cidade da Serra Gaúcha e para agricultores de cidade da Região da Campanha. São dois extremos: aquela, uma cidade organizada limpa e sem traços de miséria, com canteiros e jardins bem cuidados e totalmente asfaltada; essa, com ruas pouco conservadas, onde as camionetas Hylux passeiam por entre as carroças de madeira e seus trôpegos cavalos, além de alguns pedintes nas ruas ainda calçadas com pedra-ferro. Vê-se dessa forma que basta dar um passeio pelos municípios do nosso estado para constatar que a escravidão aqui também é uma realidade. Só não percebe quem não quer. Ou será que poderíamos dizer: “O Nordeste é aqui!” ou “O Mar virou Sertão”?

Um comentário:

Attico CHASSOT disse...

Estimado colega Jairo,
mais uma vez trazes um denúncia candente e atual. Parabéns, pela coragem que tens em denunciar esta chaga social que ainda não foi removida da sociedade brasileira. Bem aventurado aos que clamam por justiça!
Com continuada admiração

attico chassot