Luiz Fernando Veríssimo - Escritor |
Há tempo
prometo pra mim mesmo, em nome das boas relações com meus leitores, amenizar as
temáticas trazidas aqui neste semanário. Às vezes canso de estar às turras com
questões de corrupção, trabalho escravo e outras mazelas que invadem com frequência
nosso cotidiano. E olha que não faltam assuntos quando se busca lidar com estas
realidades. Mas desta vez, pensei, pensei... E cheguei à conclusão que deveria
me servir de um dos expoentes do humor bem bolado, bem escrito. Chama-se Luiz
Fernando Veríssimo, cujas obras no passado adornaram minha cabeceira, tais como
Comédias da Vida Pública e Comédias da Vida Privada. Com estas obras passei a
admirá-lo. E hoje trago aqui um excerto de “A Mesa Voadora”, denominado “O
Buffet”. Espero que vocês gostem e que seja uma amenidade interessante para
inaugurar a semana. Boa Leitura.
O Buffet
Um buffet bem montado requer criatividade e beleza |
Um dos
martírios da vida social moderna é o buffet. Ele nasceu com boas intenções,como
resposta à necessidade de alimentar da maneira mais prática o maior número de pessoas
com o máximo de elegância possível. Isto é, sem que a festa pareça um rififi no
refeitório. E difícil servir 300 ou 400 pessoas nas suas mesas e ao mesmo
tempo, à francesa, a não ser que haja quase tantos garçons quanto convidados. A
solução, já que a comida nãopode ir às pessoas, é as pessoas irem à comida.
Outra vantagem do buffet é que, com todos os pratos concentrados sobre uma
única e bem ornamentada mesa, ele dá a correta impressão de abundância. Que é,
afinal, o que nos leva a festas. Todo buffet é uma alegoria à fartura. Há
cascatas de camarões, leitões esquartejados e remontados sobre pedestais de farofa,
everestes de maionese, continentes de saladas e de frios. Uma vez, juro, vi um
faisão empalhado no centro da mesa, na pose de quem se preparava para decolar
deste insensato mundo. Só o que o mantinha na terra era a sua própria carne, em
fatias, a seus pés. Diante de um buffet você deve se debater entre dois
sentimentos: a vontade de comer tudo e o remorso por estragar a arquitetura.
Depois, é claro, de agradecer à providência por pertencer aos 30% da população
que comem e à minoria ainda menor que é convidada a buffets. Pois o buffet
também é a apoteose da boca-livre.
Os
críticos mais moderados do buffet o comparam a uma linha de montagem, e fazem
uma injustiça. A linha de montagem é mais organizada. Ao redor de uma mesa de buffet
o ser humano reverte ao seu protótipo mais primitivo: a fera diante do
alimento. A patina de civilização se quebra, como o exterior caramelado do
presunto, e é cada um por si e pelo seu estômago. Já vi velhos amigos duelarem
a empurrões diante de um rosbife, e marido e mulher chegarem aos tapas na
disputa do último camarão.Porque a verdade é que o buffet não dá certo. Ele
pressupõe um desprendimento com relação à comida que ninguém tem. Embora alguns
finjam que têm.
— Vou
esperar que os selvagens se sirvam e depois vou até lá diz ele, sorrindo com desprezo
para a horda em volta da mesa.
— Eu, se
fosse você, não esperava. O bolo de peixe já estava pela metade — avisa alguém.
— Epa —
diz ele, e mergulha no meio da horda, usando os cotovelos para abrir caminho.
Mas o
buffet é irreversível e o negócio é aprender a conviver com ele. Existem algumas
regras de conduta que nos ajudam a sair de um buffet, mesmo o mais concorrido, razoavelmente
bem alimentados e sem danos, fora alguns rasgões na roupa. Aprendi com a experiência
e tenho as marcas de garfo na mão para provar. Tome nota.
Antes de
mais nada, não obedeça a ordens. É comum o anfitrião sugerir, bem-humorado,
alguma espécie de hierarquia no acesso ao buffet. Primeiro, as mesas deste lado
ou daquele, primeiro os mais velhos, as autoridades, os mutilados de guerra
etc. Ignore-o. Seja o primeiro a saltar da mesa, mesmo fora de ordem. O máximo
que pode acontecer é você receber olhares feios. O que importa isto diante de
uma cascata de camarões ainda intocada e da oportunidade de escolher os
melhores tomates? Nunca desmereça as vantagens de chegar primeiro.
Estude o
terreno — O planejamento é importantíssimo. Ao entrar na festa, examine cuidadosamente
o buffet. Resista à tentação de começar a botar camarões no bolso.Isto é apenas
um reconhecimento.
Decore a
localização dos pratos mais importantes.
Geralmente,
há 17 tipos diferentes de salada de batata. Concentre-se numa para nãoperder
tempo depois.
Faça uma
anotação mental do melhor acesso à lagosta, se houver. Lembre-se de que dois ou
três pedaços de lagosta valem uma travessa de peito de peru em qualquer mercado
de valores do mundo. Decida se por uma estratégia de ataque. Se preciso, estude
uma ação diversionista. Na hora de avançar, dirija-se resolutamente para os
embutidos e, à última hora, desvie rapidamente para a lagosta, confundindo o
inimigo.
Macetes —
com o tempo, você os desenvolverá sozinho. Cada um tem seu estilo. Alguns
lembretes, no entanto. Se possível, sirva-se com dois pratos, com o pretexto de
que está servindo a sua mulherzinha, ou o seu maridinho, também. Se você
realmente está com sua mulher ou seu marido, melhor. Ela ou ele pode fazer o
mesmo e dizer que está servindo você. O trabalho em equipe é importante desde
que se combine previamente quem ficará com todos os camarões. Atenção: jamais
use a colherzinha que está junto ao pote para servir o caviar se houver uma
colher de sopa à mão.
Seja
impiedoso — Está bem, ninguém quer ser imoral, mas estamos falando de comida!
Se a pessoa à sua frente não se mexe e impede seu acesso aos mexilhões, que desaparecem
rapidamente, use o cabo do garfo discretamente entre a última e a penúltima costela.
Se não der certo, use a ponta do garfo. Espalhe o boato de que o leitão no
centro é de plástico e só está ali como enfeite. Finja que vai verificar e
apalpe todo o leitão com as mãos. Diga coisas como: "Ninguém se mova, acho
que caiu uma mosca na vitela tome. Pegue todo o prato, dando a entender que vai
despejá-lo pela janela”. Espirre, distraidamente, em cima dos cogumelos.
Use
coação — Geralmente, há um garçom servindo o prato quente. Provavelmente estrogonofe.
É comum o garçom carregar no arroz para poupar o estrogonofe. Ao apresentar seu
prato, encare-o e diga, com o olhar: "Eu conheço a sua laia, patife. Se me
sonegar o estrogonofe, enfiarei a sua cabeça no molho vinagrete até que você
morra!". Despeça-se dele dando a entender que voltará em breve e ai dele
se disser qualquer coisa como "você por aqui de novo?". No caso de
você e outro convidado espetarem o último pedaço de matambre ao mesmo tempo,
sorria enquanto lhe aplica um pontapé.É incrível o que se consegue com um
sorriso.
Você
conseguiu e já está saboreando o prato quente enquanto outros, menos empreendedores,
ainda nem chegaram perto dos tomates. Não se desmobilize, no entanto. Lembre-se
de que ainda falta a batalha dos doces.
Fonte: VERISSIMO, Luiz Fernando.
A Mesa Voadora. São Paulo: 2001. Ed.
Objetiva
Um comentário:
Jairo!
Sei que deve estar fulo comigo mas te juro que terminarei a tarefa assim que puder. Tu deves convir que a leitura só deve ser feita se estivermos propícios à ela e não por obrigação, pois assim não absorvemos o conteúdo. Iniciar a leitura sem uma ponta de tesão que for é como cumprir as obrigações maritais pensando na derrota do seu time de futebol.
Quanto ao "Buffet".
É admirável a capacidade de se fazer humor apenas observando fatos do cotidiano que não damos a menor importância, mas assim que lemos conseguimos mergulhar em uma divertida aventura sobre servir-nos um prato de comida, hilário. Me peguei pensando na churrascaria que frequento, assim que me acomodo à mesa o garçom me oferece o Buffet e eu gentilmente respondo que vim apenas pelo "Espeto Corrido", mas penso comigo:
- "Aquele sacana acha que eu vim para comer arroz e macarrão, eu quero toda a picanha, maminha e vazio ao alho que eu puder devorar, sem falar no queijo fundido na travessa e abacaxi com canela fechando com pudim na sobremesa, salada eu como em casa!"
Abraço Jairo!
Uilson Carvalho.
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