14 dezembro 2012

OS LUGARES DA VIOLÊNCIA

A escalada de violência que tem assustado principalmente o estado de São Paulo deixa à mostra a fragilidade do sistema policial responsável pela repressão ao crime organizado. Parece que a melhor infraestrutura está no lado dos rebeldes, pois os ataques acontecem sem que haja previsão, massacrando uma população fragilizada pela falta de segurança nas rotinas em busca dos recursos necessários à sobrevivência.
Ônibus queimado na capital paulista, cena comum nos últimos dias
As frequentes queimas de ônibus trazem prejuízo aos usuários deste sistema de transporte ineficiente, que movimenta toda a massa diariamente em idas e vindas ao labor. E como se não bastasse, o sistema prisional abarrotado sabe-se não regenera ninguém, pois as condições são extremamente desumanas. Empilhados em celas imundas e aguardando decisões de um judiciário ineficiente, os presos não possuem qualquer programa de reabilitação que lhes proporcione um fio de esperança num futuro promissor. Por tudo isso, na mesma velocidade em que se prende o meliante, em breve, na maioria das vezes, por falta de espaço e de infraestrutura, ele retorna ao convívio da sociedade para reincidir no delito.

Mas não se pode dizer que haja violência somente por parte dos transgressores recolhidos pela polícia. Esta mesma polícia que reprime é também aquela que utiliza a violência de forma indiscriminada; e isso é tácito nas suas ações, mas agora muita coisa tem vindo à tona a partir de  gravações de câmeras utilizadas em sistemas de segurança. 

Nossa sociedade também é prenhe de violência, da qual não podemos nos imiscuir. Basta que se analise o comportamento humano no dia-a-dia, no trânsito, nos hospitais, nas escolas e tantos outros lugares. Tudo está expresso em situações de falta de gentileza, de pressa pela resolução imediata de problemas e do egoísmo de uma sociedade onde a individualidade marca o estilo de vida.  

O doutor e escritor Drauzio Varela, em seu livro recente “Carcereiros”, que indico como leitura de férias, traz conteúdo interessante sobre o assunto. O livro tem como ponto marcante as histórias dos funcionários responsáveis pelo cuidado dos presos, com relatos ora vilolentos ora bem humorados. Um relato sobre as condições internas da prisão e o tratamento dos presos é um capítulo denominado “Violência Contagiosa”. Nesta reflexão que faço hoje aqui, achei interessante compartilhar com vocês; e que seja um “chamariz” para a leitura da obra como um todo.

VIOLÊNCIA CONTAGIOSA

         A sociedade brasileira, que vive assustada com a violência urbana, é omissa e conivente com aquela praticada pelo Estado, desde que a classe média e os mais ricos sejam poupados. Quando as câmeras de TV surpreendem um policial espancando populares, não falta quem justifique: “Se apanham é porque fizeram por merecer”.

         A filosofia do “bandido bom é bandido morto” tem inúmeros adeptos entre nós. O massacre do Carandiru, em que perderam a vida 111 homens do pavilhão Nove, foi aplaudido por tantos, que o comandante da tropa responsável pela operação se elegeu deputado estadual, com um número de candidatura que terminava em 111, para que não pairassem dúvidas entre seus eleitores.

Carandiru, uma tragédia até hoje sem a punição dos verdadeiros responsáveis
         A tortura nas cadeias de São Paulo arrefeceu gradualmente a partir dos anos 1990. Dois fatores contribuíram para essa mudança. O primeiro foi a pressão da sociedade, representada pelos ativistas que começaram a cobrar das autoridades a responsabilização criminal dos torturadores. O segundo foi o crime organizado, que ganhou forca nos presídios paulistas com o massacre de 1992.

         Há poucos anos um diretor de presídio foi assassinado na Grande São Paulo. Ao comentar o acontecimento, seu Manoel disse:

- Alguns ainda pensam que estão no passado. Hoje, bater em preso tem consequência; a realidade é outra.

Valdemar Gonçalves contrapõe:

- Quando fui contratado em 1986, qualquer agressão que um funcionário sofresse em qualquer cadeia gerava revolta imediata em todos nós. Hoje, passa um mês até a gente ouvir que um colega foi espancado ou assassinado no trabalho.

         Há trinta anos no Sistema, Guilherme Rodrigues considera que a cultura antiga de impor ordem nos presídios por meio da força bruta foi um erro coletivo:

- O que adiantou bater? Se tivesse dado certo, não teríamos perdido o controle das cadeias para o crime organizado, como de fato aconteceu.

         Estamos longe de acabar com a tortura no país, mesmo nas cadeias paulistas, onde a vigilância é mais severa. Como saber o que acontece durante a madrugada num canto qualquer de um distrito da periferia ou num presídio que a sociedade nem sabe que existe?
Pau-de-Arara, tortura comum nos tempos da ditadura militar
         Não vamos esquecer que a natureza do trabalho de quem convive com a criminalidade incita naturalmente a prática da violência. Contê-la não é fácil, exige seleção rigorosa de profissionais, treinamento especializado, reciclagem educacional e fiscalização permanente, tarefas que os salários baixos desestimulam e que o Estado tem muita dificuldade em executar.

         Violência é doença contagiosa.

         Durante as filmagens de Carandiru, realizadas nas dependências da própria Casa de Detenção, os figurantes que faziam o papel dos presos rebelados nas cenas do massacre foram se queixar ao diretor Hector Babenco: estavam apanhando de verdade dos colegas que interpretavam os policiais militares encarregados de reprimi-los.
        
         O vírus da violência contamina o ambiente prisional. Digo por experiência própria. Eu, que chego a demorar para pegar no sono por causa de um doente com febre – como acontece com tantos médicos - , muitas vezes senti vontade de bater num preso. Não por alguém haver me desrespeitado, fato que jamais ocorreu, mas pelos requintes de crueldade nos crimes cometidos contra gente indefesa ou pela brutalidade empregada para subjugar os companheiros.

         Um detendo famoso por haver decepado a cabeça de dois de seus companheiros de pavilhão uma vez me procurou com voz chorosa para se queixar dos dissabores que lhe causava um resfriado comum. É fácil para o médico tratar de um paciente desses com respeito e solidariedade?

A cadeia é lugar povoado de maldade
         Se eu soubesse que outro, um rapaz de 25 anos internado na enfermaria em estado grave, havia roubado e assassinado os pais e a avó de uma criança de dez anos, em seguida estuprada por ele, teria me empenhado durante semanas para conseguir os remédios que lhe salvaram a vida? Teria ido pessoalmente ao poasto de Saude para buscá-lo?

         As torturas mais bestiais de que tive notícia não forma praticadas por carcereiros, mas pelos próprios presos contra os que caíram em desgraça, na maioria das vezes por motivos fúteis, vingança ou mera disputa de poder. A perversidade no mundo do crime não conhece limites. Não vou dar mais exemplos para não relembrá-los.

         Cadeia é lugar povoado de maldade.       

Extraído de:
VARELA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Cia das Letras, 2012.

Um comentário:

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jairo,
li teu blogue no domingo. Simplesmente, então como agora, falta-me ‘tesão’ para fazer qualquer comentário. Vou te decepcionar (e podes me chamar de alienado) que tu trouxeste do livro do Dráuzio Varella me desestimulou a ler o livro.
A outro propósito, nesta terça-feira, no meu blogue me interrogo: Por que lemos jornais (ouvimos rádio / vemos televisão)? Por que estamos conectados ao mundo? Certamente não é para sofrermos, como ocorreu na sexta-feira com as notícias (ainda controvertidas) de Newton!
Releva a decepção que te causo, mas é muito sofrida esta realidade.
A admiração de teu amigo que se faz avestruz,
attico chassot
http://mestrechassot.blogspot.com