Rio de Janeiro será palco da final da Copa de 2014 |
Esta semana que encerra o segundo mês de
2014, visitei a antiga capital brasileira. Em meio aos preparativos para a
maior festa local, fiz minha incursão pela Barra da Tijuca, suportando um
enorme caos de trânsito para comparecer a uma consulta na Rede Sarah de
Hospitais, da qual falarei mais amiúde oportunamente.
Aproveitei a rápida estada para
avaliar algumas questões relacionadas a preços naquela metrópole, principalmente sabendo que
estamos chegando ao período em que a cidade sediará o grande evento futebolístico
do ano. E neste ínterim constatei na pele uma lei que, nós que vivemos os gloriosos
Anos 70, pudemos aprender e jamais esquecer: a Lei de Gerson. Mas quem foi
Gerson? Que lei é essa?
Marcelo Gruman |
Vou me poupar da escritura do Blog esta semana, porque retornei bastante cansado e prefiro “terceirizar” a
edição. Mas não vou deixá-los “às moscas”, meus caros e fiéis leitores, porque busquei uma boa
companhia para esta leitura semanal. Ficarão com excelente artigo do
antropólogo social Marcelo Grumann sobre a intrigante “Lei de Gerson”. Tenho
certeza de que será uma boa leitura.
Em 1976, Gérson,
ex-jogador da seleção de futebol tricampeã mundial, conhecido como “canhotinha
de ouro”, estrelou um comercial de cigarros. No vídeo, o meia-armador é
apresentado como o “cérebro” do time campeão mundial no México e, perguntado
pelo narrador da propaganda, o porquê de escolher o cigarro Vila Rica,
responde: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de
um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você
também, leve Vila Rica!”. Mais tarde, Gérson se disse arrependido por ter associado
a sua imagem ao anúncio, uma vez que qualquer comportamento pouco ético ou
antiético passou a ser conhecido como Lei de Gérson. Quase quatro
décadas se passaram, mas a expressão continua mais viva do que nunca. Vejamos,
então.
No verão escaldante
que vive a cidade do Rio de Janeiro, duas repórteres da rádio CBN resolveram ir
à praia de Copacabana com o objetivo de comparar os preços cobrados pelos
vendedores ambulantes e barraqueiros para o turista e para quem mora na cidade.
Os itens pesquisados foram: aluguel de barraca e cadeira; filtro solar fator
60; bronzeador; camarão; biquíni; empada, biscoito Globo (biscoito polvilho,
uma tradição das praias cariocas); mate e água. Na média, o turista que
visita a Cidade Maravilhosa tem que desembolsar 46% a mais do que o carioca da
gema para comprar os mesmos produtos.
Eis o relato da
repórter “estrangeira”: “Em inglês, me fazendo de turista o tempo todo,
perguntei ao barraqueiro quanto custava para alugar um guarda-sol e uma
cadeira. A resposta foi tão rápida e firme, que qualquer estrangeiro não
desconfiaria. Barraca a R$ 15 e cadeira por R$ 10. Negócio fechado”.
Agora, o relato da
repórter “carioca”: “Cinco minutos depois, cheguei à mesma barraca e perguntei
quanto custava para alugar uma cadeira e um guarda-sol. O mesmo barraqueiro
informou: R$ 10 o guarda-sol e R$ 7 a cadeira. Eu tentei negociar, disse que
consumiria na barraca e, então, consegui fechar por R$ 15”.
Cariocas bem
humorados criaram uma moeda fictícia, chamada “surreal”, usada para pagar a
conta de restaurantes que cobram até R$ 100,00 por um prato de estrogonofe de
frango ou uma singela lata de cerveja que chega a custar, em ambulantes
espalhados pela cidade, a bagatela de R$ 6,00, ou cerca de 300% acima do valor
cobrado nos supermercados.
A lei da oferta e da
procura e a busca do lucro desenfreado, características inerentes do sistema de
produção capitalista, ajudam a entender o que acontece nas praias cariocas, mas
não são suficientes para explicar o fenômeno. É a pura malandragem, na pior
acepção do termo. É a Lei de Gérson agindo novamente, é querer passar os outros
para trás, é levar vantagem em tudo, custe o que custar (aos que se dispõem a
pagar o que é cobrado…), é a cara de pau, a ganância. Haja óleo de peroba.
Para Gruman, a classe política também inspira a sociedade brasileira |
A sociedade
brasileira está contaminada por esse “modo de vida”. O padrão de comportamento
vem lá de cima, dos altos escalões da administração pública, que desrespeitam
constantemente as fronteiras entre espaço público e privado, entre interesses
coletivos e particulares, que corrompem e são corrompidos, que superfaturam ou
subfaturam contratos de acordo com a conveniência do momento. Pensa o cidadão
aqui embaixo: se os “homens” fazem o que fazem e nada acontece, por que eu devo
agir eticamente, de acordo com valores caros a sociedades democráticas?
Superfaturar o custo de obras públicas, o preço cobrado pela latinha de cerveja
ou a barraca de praia alugada para o turista “otário” são ações da mesma
natureza, a boa e velha malandragem. Poder-se-ia até discutir o seu caráter
criminoso em termos legais, no entanto, se as avaliarmos em termos de valores
como decência, honestidade, civilidade, democracia, todas elas são deploráveis
e condenáveis na mesma medida.
Colocar o dedo na
ferida não é fácil, tanto pra quem coloca quanto pra quem sente a dor, mas é
fundamental uma dose de humildade, o que é raro. O colunista do jornal O Globo,
Ancelmo Góis, publica, eventualmente, notícias de alguém que foi roubado num
restaurante em Paris ou Londres e conclui dizendo que “deve ser terrível… você
sabe”. O colunista usa a tática irônica do “morde e assopra”: o título expõe as
mazelas brasileiras, porque assaltos de todo tipo são corriqueiros por aqui,
mas revela que também em cidades “civilizadas” o “mar não está para peixe”. A
mensagem é a seguinte: problemas existem em todos os lugares, ninguém é melhor
que ninguém. Este cinismo contamina a todos, como o comprova o Ministro dos
Esportes, Aldo Rebelo que, ao comentar a violência urbana no país que sediará a
próxima Copa do Mundo de futebol, respondeu que a única vez em que sofreu um
assalto em sua vida foi, que azar, na Cidade Luz, Paris. A dificuldade em
aceitar críticas de um homem público traz consigo um tom de empáfia, arrogante,
prepotente, de péssimas lembranças, quando se ouvia a frase “Brasil: ame-o ou
deixe-o”.
A atriz Sonia Braga protagonizou a primeira Gabriela |
Será que devemos
partilhar desta lógica do “roto falando do esfarrapado”? Será que devemos nos
contentar com um padrão moral de quinta categoria, já que aqui, em Paris,
Londres ou Nova Iorque encontramos os mesmos problemas? Será que as respostas
aos problemas são as mesmas? E por que compararmos incessantemente o que
acontece em nosso quintal com o que acontece no quintal alheio? Por que não
medirmos nossa moralidade a partir dos nossos critérios? Por que não
conseguimos nos desvencilhar destas comparações ridículas com o exterior,
tentando desqualificar, a partir de alguns exemplos de violência urbana (notem:
nunca há mortos e feridos, ao contrário daqui) a qualidade de vida de
sociedades socialmente mais justas? Por que a sociedade brasileira não mede
suas ações a partir de sua régua moral? Não seria uma prova de despeito,
inveja? Se franceses, ingleses e norte-americanos vivem mal, problema deles.
Cuidemos dos nossos.
A Lei de Gérson,
diferente da maior parte das leis brasileiras, que não pegam, pegou. E por quê?
Porque não depende de imposições legais, é parte do direito consuetudinário,
direito não escrito fundado nos usos e costumes, incorporado ao cotidiano assim
como o feijão com arroz. O mais triste é ver que o malandro pé de chinelo não
entende que sua ação só legitima as “malfeitorias” dos de cima. É o barraqueiro
da praia ou o ambulante da latinha de cerveja que tem que usar os sistemas
públicos de saúde e transporte, sucateados, com deficiência de profissionais
qualificados e infraestrutura caindo aos pedaços. Sucateados, diga-se de passagem,
além da costumeira ineficiência da gestão do bem público, e pra rimar, por
conta da malandragem.
Até quando a sociedade
brasileira vai sofrer da Síndrome de Gabriela? Eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, vou
ser sempre assim… Gabriela… Sempre Gabriela.
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