Na seqüência quero trazer um outro grande mestre da educação. Este, de descendência francesa, foi professor de Ciências da Educação da Universidade de Paris e tem grande expertise nas realidades de professores e alunos, pois passou praticamente vinte anos estudando as relações que as pessoas estabelecem com o conhecimento. Para Bernard Charlot, “quando falta reflexão no saber e aventura em classe, a escola perde o sentido original.” Segundo Charlot, há uma semelhança muito grande entre a escola francesa e a brasileira, embora as situações como a do Ensino Básico sejam universais. A título de leitura complementar ao texto de Charlot, gostaria de sugerir duas excelentes obras do autor: "Da Relação com o Saber" e "Os Jovens e o Saber", ambos da Editora Artmed.
Atualmente, Charlot acompanha de perto a realidade das escolas brasileiras, principalmente as do Nordeste, pois vive em Aracaju, como professor de pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe, e é casado com uma professora brasileira.
Extraí trechos dos mais significativos de uma recente entrevista concedida por Bernar Charlot à Revista Nova Escola, em sua última edição. Vejam o que ele diz a respeito desse conflito que prepondera em muitas salas de aula da realidade atual.
Há duas línguas diferentes sendo faladas na escola: a dos professores e a dos alunos. Para os alunos, há uma lógica no ato de estudar e, para os professores, há outra. Ouço muito das crianças: “Fui a todas as aulas, estudei em casa e não concordo com as notas que recebi.” O professor retruca, afirmando que o estudante é preguiçoso e não entendeu a matéria. Esse descompasso revela o grande abismo que existe entre as pessoas e interfere no processo de aprendizagem.
O objetivo de minhas pesquisas não é encontrar vítimas e vilões. Os dois lados têm suas razões. E digo isso com sinceridade. Qual a trajetória de alunos e professores na construção do saber? Isso sim é importante e explica o ponto de vista de cada um. Estudar a ótica do outro é a primeira lição que alunos e professores precisam aprender. Mesmo assim, o diálogo verdadeiro ainda é muito difícil.
A instituição escolar defende que, se o estudante não fez as tarefas, não leu nem adquiriu um saber intelectual, ele pode ser reprovado. Para esse aluno, isso é uma injustiça, algo ilógico. A maioria dos estudantes gosta de ir à escola para comer, namorar e brincar. Nunca ouço que é um lugar para aprender. Para eles, os estudos, os trabalhos e as pesquisas existem para atender apenas aos interesses da escola. Assim, professores pensam que ensinam e alunos pensam que estudam.
Há milhares de motivos pelos quais os jovens imaginam que a escola é o lugar do lazer e não do saber. É importante descobri-los, mais do que criticar. Os conflitos nascem quando o professor explica algo que não é compreendido. Ainda tranqüilo, e com outras palavras, ele explica de novo, e outra vez sem sucesso. Rapidamente, ele vai considerar o estudante um incapaz. O educador culpa o aluno, mas se sente fracassado também porque a turma não avança. O jovem, por seu lado, pensa que o professor não sabe ensinar. O clima fica tenso e uma coisa sem importância vira estopim para uma agressão verbal ou física.
Ser professor hoje em dia é uma missão quase impossível. É preciso ter jogo de cintura para enfrentar as diversas contradições. O aluno vai à escola sem ter recebido uma socialização prévia. No passado, quando apenas uma pequena parte da população tinha acesso à Educação formal, não havia esse problema. Os pais preparavam os filhos para essa etapa da vida e os irmãos mais velhos, que também freqüentavam a escola, ajudavam os mais novos. Porém, quando toda a população passa a estudar, você se vê diante de crianças que não foram preparadas para as situações de aprendizagem. A dificuldade atual da escola é conseqüência da democratização. E quem há de reclamar disso?
O professor espera encontrar em sala de aula um clone ideal dele mesmo, ou seja, uma pessoa que ele gostaria de ser: crítico, reflexivo, leitor e dedicado. Mas o professor também deseja alunos obedientes. E essa contradição é insolúvel. Como ser, ao mesmo tempo, obediente, crítico e inquieto com a realidade? Na verdade, os critérios estão quase sempre baseados no comportamento: muitos acreditam que o bom aluno é aquele que não atrapalha o andamento da aula, chega na hora certa, levanta a mão para fazer perguntas inteligentes e conta com o interesse dos pais pelos estudos.
Uma vez ouvi esta frase: “Gosto muito do meu professor porque ele nos trata como seres humanos.” Ilude-se quem pensa que os meninos e as meninas esperam um amigo ou um colaborador mais velhos. Os jovens querem se relacionar com um profissional maduro. Outro ponto importante: eles não querem ser números. Não há nada pior para uma criança ou um adolescente do que encontrar seu professor na rua e não ser reconhecido. Os jovens não agüentam ser tratados como anônimos. Isso confirma uma das principais competências que se espera de um profissional da Educação - a capacidade de se relacionar. E acrescento: com humor, que é o melhor remédio para enfrentar as contradições do universo da Educação.
Existe uma tensão que faz parte do ato pedagógico. O primeiro problema que o docente enfrenta é não produzir diretamente seu trabalho. Explico: o que faz o aluno aprender é sua própria atividade intelectual, não a do mestre. O trabalho do educador é despertar e promover essa atividade. É assim, sempre foi e sempre será, em qualquer sociedade e época. Se o estudante fracassa, a culpa é do professor, por mais que ele não tenha o poder de enfiar o saber dentro da cabeça do jovem. Essa tensão se converte facilmente em conflito quando o aluno se sente pressionado ou enganado. Mas os conflitos nem sempre são negativos. Penso que é uma sorte viver tantas contradições. Para ser feliz é preciso renunciar a uma idéia enganosa de felicidade. O humor, a reflexão e o prazer são imprescindíveis para aceitar as diferenças e é isso que permite avançar. Já imaginou uma escola sem conflitos? Seria muito monótona.
Uma pesquisa feita na França com estudantes do Ensino Médio mostrou que eles usam o que foi aprendido na escola para pensar e construir novos saberes. Eles conseguem fazer essa transposição. Não há relação direta entre fracasso escolar e classe social. Apesar de, em termos estatísticos, existir uma probabilidade maior de alguém de classe popular fracassar nos estudos, muitos são bem-sucedidos. Mas também há uma grande quantidade de filhos da classe média que são reprovados. Minhas pesquisas têm por objetivo entender o que acontece especificamente com os que enfrentam dificuldades. Se o pai é imigrante, está desempregado ou ausente, não importa para a análise, mas sim o que a criança faz dessas condições. Para isso, precisamos saber se ela estuda e, principalmente, por que estuda; ou seja, que sentido tem a escola para ela. Esse aspecto é interessante e inusitado.
A maioria dos alunos acredita desempenhar seu papel em ir à escola todos os dias, não fazer muitas bobagens e escutar o professor. Enfim, cumprir um protocolo. Eles vão à escola para passar de ano até conseguir um trabalho, dinheiro e uma vida considerada normal e não necessariamente para construir capacidades. A primeira lição que aprendem é obedecer. E aí se vê um pacto silencioso de cumplicidade com os professores: Você obedece e não atrapalha minhas aulas. Em contrapartida eu só passo lições e provas fáceis. Para outros jovens, o estudo é uma conquista permanente que exige muita força de vontade, esforço e dedicação. No geral, pobres e ricos apresentam as mesmas características. Nos dois lados, encontramos o tipo que não sabe o que está fazendo no colégio.
Quando perguntamos a alguém por que ir à escola, a resposta imediata é “obter um emprego”. Muitos se esquecem de que não é a escola que garante o emprego. Ela tem outro papel, bem mais amplo e importante. Para conseguir uma boa colocação no mercado de trabalho, é preciso adquirir saberes, desenvolver a imaginação, construir referências para entender o que é a vida, o que é o mundo e o que é a convivência com os outros. Há uma grande perda de tempo e energia quando isso não acontece. Todos se sentem lesados, e não poderia ser diferente. Quando a Educação se preocupa demais com o mercado de trabalho, ela exclui os mais pobres. A escola e o saber ainda são a grande chance de ascensão social para muitos e estão se tornando uma maldição para os jovens mais fracos e mais desfavorecidos economicamente. Quem não tem um diploma não consegue emprego, certo? O mesmo vale na França, no Brasil e em qualquer lugar do mundo. A escola ideal é aquela que faz sentido para todos e na qual o saber é fonte de prazer. Isso não quer dizer que dispense esforço. O esportista, para ter satisfação, se empenha muito. Ainda hoje, um grande número de professores pensa que sua função é dar respostas, mas elas não significam nada se não houve um questionamento anterior. Os estudantes estão decorando coisas que nem sequer entendem. O trabalho do professor é fazer nascer novas questões e o interesse pela escola. Caso contrário, ele gasta o ano letivo em embates sem solução.
Fonte principal consultada: Revista Nova Escola - Edição de abril 2011
Um comentário:
Concordo com você professor. Sou pedagoga (e sua aluna da tst 111) e acredito também que o nosso papel não é dar respostas prontas ao aluno e sim incitá-los a encontrar por si mesmos, ou seja, somos facilitadores da aprendizagem e não donos do saber.
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