Este março que recém
se encerra, teve a marca lamentável de uma sina que acompanha a mulher brasileira
desde os tempos do exploratório período colonial. E apesar de avançarmos em pleno século
XXI, ela ainda se faz muito presente em nossos dias.
Não bastassem os
feminicídios motivados por futilidades, ciúmes e a retrógrada e sempre aludida “defesa
da honra”, os eventos recentes trouxeram o cantor sertanejo extraído da cena
dominical, num domingo “kids”, diante da possibilidade de afugentar a audiência.
Também sobressaiu-se o “machismo” do senador gaúcho que, segundo relatos jornalísticos,
agrediu “de cinta” a companheira, bem ao “estilo grosseiro, caudilho e coronelístico”
do velho estancieiro fronteiriço. E para coroar o final de temporada, o “garanhão”
global acostumado a deflorar as verdoras estreantes no set novelístico da Venus
Platinada, sem que lhe fosse imputada qualquer punição, foi motivo de intensa campanha
no meio artístico feminino, com repercussão em todos os meios de comunicação.
E o fato ocorrido
nos estúdios da Rede Globo, de início parecia mais um daqueles passiveis de
revistas de fofocas de famosos. Mas tomou proporções inesperadas na semana que
passou.
Incentivada pelas
colegas de arte, a figurinista Su Tonani divulgou um manifesto contando em
detalhes o fato ocorrido, inclusive mantendo expressões mais corriqueiras para
que o entendimento fosse possível em qualquer nível de conhecimento. Observem:
“José
Mayer me assediou”
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Por Su Tonani*
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"Eu, Susllem Meneguzzi Tonani, fui assediada por José
Mayer Drumond. Tenho 28 anos, sou uma mulher branca, bonita, alta. Há cinco
anos vim morar no Rio de Janeiro, em busca do meu sonho: ser figurinista.
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Qual mulher nunca levou uma cantada? Qual mulher nunca foi
oprimida a rotular a violência do assédio como “brincadeira”? A primeira
“brincadeira” de José Mayer Drumond comigo foi há 8 meses. Ele era
protagonista da primeira novela em que eu trabalhava como figurinista
assistente. E essa história de violência se iniciou com o simples: “como você
é bonita”. Trabalhando de segunda a sábado, lidar com José Mayer era
rotineiro. E com ele vinham seus “elogios”. Do “como você se veste bem”, logo
eu estava ouvindo: “como a sua cintura é fina”, “fico olhando a sua bundinha
e imaginando seu peitinho”, “você nunca vai dar para mim?”.
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Quantas vezes tivemos e teremos que nos sentir despidas pelo
olhar de um homem, e ainda assim – ou por isso mesmo – sentir medo de gritar
e parecer loucas? Quantas vezes teremos que ouvir, inclusive de outras
mulheres: “ai que exagero! Foi só uma piada”. Quantas vezes vamos deixar
passar, constrangidas e enojadas, essas ações machistas, elitistas, sexistas
e maldosas?
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Foram meses envergonhada, sem graça, de sorrisos encabulados.
Disse a ele, com palavras exatas e claras, que não queria, que ele não podia
me tocar, que se ele me encostasse a mão eu iria ao RH. Foram meses saindo de
perto. Uma vez lhe disse: “você é mais velho que o meu pai. Você tem uma
filha da minha idade. Você gostaria que alguém tratasse assim a sua filha?”
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A opressão é aquela que nos engana e naturaliza o absurdo.
Transforma tudo em aceitável, em tolerável, em normal. A vaidade é aquela que
faz o outro crer na falta de limite, no estrelato, no poder e na impunidade.
Quantas vezes teremos que pedir para não sermos sexualizadas em nosso local
de trabalho? Até quando teremos que ir às ruas, ao departamento de RH ou à
ouvidoria pedir respeito?
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Em fevereiro de 2017, dentro do camarim da empresa, na
presença de outras duas mulheres, esse ator, branco, rico, de 67 anos, que
fez fama como garanhão, colocou a mão esquerda na minha genitália. Sim, ele
colocou a mão na minha buceta e ainda disse que esse era seu desejo antigo.
Elas? Elas, que poderiam estar no meu lugar, não ficaram constrangidas.
Chegaram até a rir de sua “piada”. Eu? Eu me vi só, desprotegida,
encurralada, ridicularizada, inferiorizada, invisível. Senti desespero, nojo,
arrependimento de estar ali. Não havia cumplicidade, sororidade.
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Mas segui na engrenagem, no mecanismo subserviente.
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Nos próximos dias, fui trabalhar rezando para não encontrá-lo.
Tentando driblar sua presença para poder seguir. O trabalho dos meus sonhos
tinha virado um pesadelo. E para me segurar eu imaginava que, depois da mão
na buceta, nada de pior poderia acontecer. Aquilo já era de longe a coisa
mais distante da sanidade que eu tinha vivido.
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Até que nos vimos, ele e eu, num set de filmagem com 30
pessoas. Ele no centro, sob os refletores, no cenário, câmeras apontadas para
si, prestes a dizer seu texto de protagonista. Neste momento, sem medo,
ameaçou me tocar novamente se eu continuasse a não falar com ele. E eu não
silenciei.
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“VACA”, ele gritou. Para quem quisesse ouvir. Não teve medo. E
por que teria, mesmo?
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Chega. Acusei o santo, o milagre e a igreja. Procurei quem me
colocou ali. Fui ao RH. Liguei para a ouvidoria. Fui ao departamento que
cuida dos atores. Acessei todas as pessoas, todas as instâncias, contei sobre
o assédio moral e sexual que há meses eu vinha sofrendo. Contei que tudo
escalou e eu não conseguia encontrar mais motivos, forças para estar ali. A
empresa reconheceu a gravidade do acontecimento e prometeu tomar as medidas
necessárias. Me pergunto: quais serão as medidas? Que lei fará justiça e irá
reger a punição? Que me protegerá e como?
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Sinto no peito uma culpa imensa por não ter tomado medidas
sérias e árduas antes, sinto um arrependimento violento por ter me calado, me
odeio por todas as vezes em que, constrangida, lidei com o assédio com um
sorriso amarelo. E, principalmente, me sinto oprimida por não ter gritado só
porque estava em meu local de trabalho. Dá medo, sabia? Porque a gente acha
que o ator renomado, 30 e tantos papéis, garanhão da ficção com contrato
assinado, vai seguir impassível, porque assim lhe permitem, produto de ouro,
prata da casa. E eu, engrenagem, mulher, paga por obra, sou quem leva a fama
de oportunista. E se acharem que eu dei mole? Será que vão me contratar outra
vez?
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Tenho de repetir o mantra: a culpa não foi minha. A culpa
nunca é da vítima. E me sentiria eternamente culpada se não falasse.
Precisamos falar. Precisamos mudar a engrenagem.
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Não quero mais ser encurralada, não quero mais me sentir
inferior, não quero me sentir mais bicho e muito menos uma “vaca”. Não quero
ser invisível se não estiver atendendo aos desejos de um homem.
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Falo em meu nome e acuso o nome dele para que fique claro, que
não haja dúvidas. Para que não seja mais fofoca. Que entendam que é abusivo,
é antigo, não é brincadeira, é coronelismo, é machismo, é errado. É crime.
Entendam que não irei me calar e me afastar por medo. Digo isso a ele e a
todos e todas que, como ele, homem ou mulher, pensem diferente. Que entendam
que não passarão. E o que o meu assédio não vai ser embrulho de peixe. Vai é
embrulhar o estômago de todos vocês por muito, muito tempo."
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